quarta-feira, 24 de março de 2010

A proibição da prisão do depositário infiel e o pacto de san jose da costa rica: uma análise à luz do ordenamento constitucional pátrio.


A Norma Ápice da República Federativa do Brasil estabelece, no inciso LXVII do Artigo 5º, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”

Consoante é possível observar, duas situações foram excetuadas da proibição constitucional, vale dizer, referentes ao devedor de alimentos e ao depositário infiel. A primeira delas jamais deu ensejo a maiores discussões, seja no campo doutrinário ou no jurisprudencial. Já no que se refere à questão do depositário infiel não se pode dizer o mesmo.

Uma das questões mais discutidas é a decorrente do Decreto-Lei nº. 911/69, que criou a figura do depósito por equiparação, referindo-se ao devedor fiduciante como uma espécie de depositário infiel. Em que pese as posições em contrário, mormente oriundas do STJ, o disposto no referido diploma legal levou o Supremo Tribunal Federal a considerar que o fiduciante inadimplente deveria ser considerado depositário infiel e, portanto, albergado pela ressalva efetuada no art. 5º, LXVII, da Constituição Federal[1].

Mas essa nem de longe é maior discussão acerca do tema. Tudo em razão do que preceitua o art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, amplamente conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, elaborado em 1969. Referida norma dispõe que “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Como visto, o aludido Pacto seguiu a direção das legislações mais avançadas em termos de Direitos Humanos, no sentido da proibição de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, salvo, como já exposto, as decorrentes de prestações alimentícias[2].

Pois bem. O debate acerca das posições conflituosas entre os mandamentos contidos no Pacto de San Jose e na Constituição Federal tomou corpo com a adesão do Brasil àquele, ocorrido no ano de 1992.

Inicialmente, a discussão consistiu em saber qual o status conferido aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aos quais o Brasil aderiu. E foi dessa discussão que se chegou ao atual posicionamento adotado no país, por meio do qual restou proibida a prisão do depositário infiel.

Segundo preconiza Gilmar Mendes[3], quatro foram os caminhos tomados pelos intérpretes. O primeiro deles reconhece um caráter de supraconstitucionalidade àqueles. Já a segunda, terceira e quarta vertentes, defendem, respectivamente, os status de constitucional, de lei ordinária e de supralegalidade aos tratados e convenções sobre direitos humanos ratificados pela República Federativa do Brasil.

Tendo em conta o escopo do presente ensaio, muito embora se reconheça o potencial doutrinário dos que defendem as demais teses, daremos maior atenção apenas àquelas que apresentaram maior força no decorrer desta discussão que teve sua derradeira fase no corrente ano, quais sejam, a da equiparação à legislação ordinária pátria e a da supralegalidade.

Nesse desiderato, a tese de que os tratados e convenções sobre direitos humanos teriam caráter de lei ordinária foi abraçada pelo STF a partir do julgamento do RE 80.004/SE, com a coroação do entendimento de que tais pactos não possuíam legitimidade suficiente para confrontar ou complementar os preceitos constitucionais acerca da matéria. Assim, prevaleceu a idéia de que um ato normativo internacional poderia ser modificado/revogado por lei ordinária posterior. Reconhecia-se, dessa forma, no particular, a supremacia da regra lex posterior derrogati priori[4].

Neste ponto, merece ser destacado que essa tese, que já vinha ruindo no campo doutrinário, levou outro duro golpe com a edição da Emenda Constitucional nº. 45/2004. Através dela foi acrescentado o §3º ao art. 5º da nossa Carta Política, com o seguinte texto: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Na espécie, é possível concluir que, independentemente de serem elevados ou não ao caráter de emenda constitucional, o Poder Constituinte Reformador emprestou especial status aos tratados e convenções dessa natureza. Apenas por esse fato já seria possível afastar qualquer equiparação entre eles e a legislação ordinária.

Ganhou destaque, assim, a tese da supralegalidade dos referidos pactos. Segundo seus defensores, os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil estão localizados em um ponto inferior à Constituição, porém superior às demais normas do ordenamento jurídico.

Como não poderia ser de outra forma, a tese começou a ganhar espaço na Suprema Corte brasileira, tendo como marco inicial o voto do Ministro Sepúlveda Pertence no RHC 79.785/RJ, em sessão realizada em 29 de março de 2000.

Todavia, a vitória da corrente ora tratada ocorreu bem depois, mais precisamente em 03 de dezembro de 2008, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal arquivou o Recurso Extraordinário 349.703 e negou provimento ao RE 466.343, que discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. Na mesma oportunidade os Ministros estenderam a proibição de prisão civil por dívida às hipóteses de infidelidade no depósito de bens e alienação fiduciária.

Como conseqüência do acima narrado, o STF revogou a Súmula 619, que continha a seguinte redação: “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.

Nesse quadro, merece destaque o fato de o voto do Ministro Celso de Mello, ter sido no sentido não da supralegalidade, mas sim do valor constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Este entendimento acabou sendo acompanhado pelos Ministros Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie.

Independentemente da linha adotada pelos membros da mais alta Corte do país, é certo que restou afastada do nosso ordenamento constitucional a possibilidade da prisão civil do depositário infiel.

Deve-se, entretanto, salientar que o disposto no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal não foi revogado pela adesão do Brasil ao Pacto de San Jose da Costa Rica. É mais correto dizer que a norma, quanto ao ponto estudado, teve sua aplicabilidade obstada em face do que o Ministro Gilmar Mendes chama de “efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria”.

Com efeito, é possível concluir que o posicionamento adotado pelos Ministros do STF decorre da forte corrente internacional, iniciada após a Segunda Guerra Mundial, no sentido da proteção dos direitos humanos fundamentais, tendo, no Brasil, resultado na promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu texto uma grande carga de referência aos aludidos direitos.

[1] Cf. RHC 80.035/SC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 17.08.2001.
[2] MENDES, Gilmar, et alii. Curso de Direito Constitucional. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 690.
[3] Ob. cit. p. 691.
[4] Idem, p. 697.

Abogado responsable:
Leonardo Dantas

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