sexta-feira, 30 de outubro de 2009

* O direito de propriedade e o Código de Trânsito Brasileiro


Mário Rocha Castro Júnior
advogado, pós-graduando em Direito Público, diretor de operações de transporte público da Secretaria Municipal de Trânsito e Infra-Estrutura do Município de Contagem (MG)
RESUMO
O direito de propriedade encontra-se, na Constituição Federal brasileira, no título que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais". Por esta razão, o regime jurídico da propriedade, no Direito brasileiro, tem seu fundamento na Constituição. Não se tem dúvida de que a propriedade, consagrada desde que o Direito iniciou sua positivação, é um direito fundamental.

Ao longo do tempo, passou-se a questionar as características tradicionais do direito de propriedade, que sempre foi tido como absoluto, exclusivo e perpétuo. Surgiram, então, as chamadas limitações ao direito de propriedade.

Ademais, no Direito Constitucional brasileiro, a propriedade também deve atender à sua função social (art. 5º, inciso XXIII, CF). Todavia, a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade, que dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário. A função social da propriedade refere-se à estrutura do direito mesmo, à propriedade.

O legislador não se ateve, todavia, à observância deste princípio e de outras garantias constitucionais. Ao ser aprovado o atual Código de Trânsito Brasileiro – CTB (Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997), permaneceu no ordenamento jurídico um resquício do autoritarismo que reinou no País por muitos anos. O § 2º do art. 262 do CTB, por exemplo, determina que "a restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica". Ou seja, o proprietário de veículo automotor que sofrer a penalidade de apreensão do mesmo se vê na obrigação de pagar todos os débitos relativos a ele para que possa exercer seu direito de propriedade.

O principal objetivo deste trabalho é trazer à discussão a flagrante inconstitucionalidade deste dispositivo e de outros, na mesma linha, do aludido texto legal, já manifestada por diversas decisões do Poder Judiciário e mostrar que o Poder Público tem todo o aparato e dispõe de todos os instrumentos necessários para exigir dos proprietários de veículos os débitos relativos a eles, permitindo, assim, a instauração do devido processo legal e a manifestação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Para tanto, adotar-se-á como marco teórico a "Teoria do Direito e do Estado", de Miguel Reale (1984), que critica as teorias que pretendem explicar o problema dos direitos públicos subjetivos com teorias puramente jurídicas. Reale examina-o sob três prismas ou três aspectos distintos: o sociológico, o jurídico e o político.

A metodologia a ser utilizada no desenvolvimento do presente trabalho será pautada na vertente jurídico-dogmática, pois se trabalhará apenas com os elementos internos ao ordenamento jurídico. Serão usados os tipos de pesquisa exploratório e descritivo e o trabalho terá caráter monodisciplinar.

Promover-se-á, desta forma, uma severa crítica aos abusos que vêm sendo cometidos pelos órgãos de trânsito em todo o País, em cumprimento ao que se encontra preceituado no Código de Trânsito Brasileiro.

1 O DIREITO DE PROPRIEDADE
1.1 O direito de propriedade na história

A propriedade já existe desde longa data assegurada ao homem no desenvolvimento da história. Roberto Lowie em seu Manual de antropologia cultural já mostra a existência da propriedade na sociedade primitiva. Engels estudou a sua gênese e o seu desenvolvimento numa obra clássica da sociedade marxista, a saber, o estudo sobre A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

Entre os povos orientais, especialmente entre os persas, a propriedade era familiar e tribal, e individualizou-se entre os gregos e os romanos. Os eslavos e germânicos conheceram a propriedade comum, que abandonaram pela influência do cristianismo.

No século XIII, os barões consagraram o direito à propriedade com a Magna Carta assinada em 1215 na Inglaterra, por imposição a João Sem Terra, e que os documentos constitucionais posteriores confirmaram.

Na França a propriedade foi tida como sagrada pela sua Declaração de 1789: "A propriedade, sendo um direito inviolável e sagrado, ninguém pode dela ser privado, a não ser quando o exigir evidentemente a necessidade pública, legalmente acertada e sob a condição de justa e prévia indenização".

Na América do Norte não somente as Constituições dos Estados-Membros como a Constituição Federal em suas emendas V e XIV asseguram a propriedade, de que ninguém pode ser privado sem o devido processo de direito.

Atualmente o direito de propriedade não tem o sentido absoluto do direito romano tradicional. Ela se ajusta às novas condições sociais. Duguit desenvolveu com mestria a teoria da função social da propriedade, incorporada ao Código Civil soviético.

As Constituições das democracias marxistas consagram esta limitação da propriedade. A União Soviética limitou-se intensamente com a sua Constituição de 1936, embora admitindo a propriedade privada dos bens ao lado da propriedade coletiva campesina e da propriedade do Estado.

A Constituição da China marxista de 1954, no seu art. 10, "substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas pela propriedade de todo o povo".

Muitas modificações foram feitas ao sagrado de outrora, que protegia a propriedade, especialmente pelas democracias marxistas, chegando à coletivização em massa. As limitações trazidas à propriedade privada são estranhas à ortodoxia burguesa do direito de propriedade.

1.2 O direito de propriedade no constitucionalismo brasileiro

A Constituição do Império de 1824 garantia a propriedade de um modo absoluto, assemelhando-se à orientação clássica do jusprivatismo romano, do jus utendi, fruendi et abutendi. Dizia ela em seu art. 179, inciso 22: "É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude". Só permitia uma limitação pelo bem público justificando a desapropriação. Garantia inclusive o direito de propriedade dos escravos, que eram vendidos, herdados ou hipotecados.

A República também garantiu a propriedade, permitindo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, de acordo com a Constituição de 1891.

A Constituição de 1934 inspira-se em uma conceituação social da propriedade, determinando não só a desapropriação por necessidade e utilidade pública, como também o uso da propriedade particular até onde o bem público o exija, em caso de guerra ou comoção intestina, com o direito de indenização posterior. Estes preceitos de um modo geral são trasladados para a Carta da Ditadura de 1937.

A Constituição de 1946, consolidando o direito de propriedade, fixou mais um outro caso de desapropriação por interesse social, condicionando o uso da propriedade ao bem-estar social. A desapropriação só poderá ser feita com prévia e justa indenização, e daí as tentativas das reformas de base, conducentes à desapropriação em títulos de dívida pública.

A Constituição de 1967 e sua Emenda Constitucional n.º 1/69 mantiveram o direito de propriedade.

A Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inciso XXIII) garante o direito de propriedade, que deverá atender a sua função social.

1.3 Aspectos gerais do direito de propriedade

A propriedade é o direito real por excelência e dele partem todos os outros direitos reais elencados na legislação civil. Não seria errado asseverar que a propriedade é o centro irradiador de todos os outros direitos reais. A ela estão ligados uma gama de direitos que se formam pela possibilidade de movimentar, o seu titular, os poderes inerentes do domínio.

Domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substância, acidentes e acessórios.

Desta noção resulta:

1.que o domínio envolve a faculdade de gozar de todas as vantagens que a coisa encerra, sob quaisquer relações;

2.que é ilimitado e como tal inclui em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos compatíveis com as leis da natureza;

3.que é de sua essência exclusiva, isto é, contém em si o direito de excluir da coisa a ação de pessoas estranhas.

São características do direito de propriedade, segundo a doutrina reinante do Direito Civil:

a)ABSOLUTISMO: a possibilidade de seu titular dispor da coisa como lhe aprouver, da forma que entender, sujeitando-se a determinadas limitações impostas pelo interesse público ou pela coexistência de outros direitos de propriedade.

b)EXCLUSIVIDADE: a mesma coisa não pode pertencer com exclusividade e simultaneamente a duas ou mais pessoas. O direito de um sobre determinado bem exclui o direito do outro.

c)ELASTICIDADE: a possibilidade de desmembramento e remembramento de certas parcelas, distendendo seus elementos constitutivos e criando direitos, obrigacionais ou reais, em favor de terceiros.

d)PERPETUIDADE: não se extingue pelo não-uso.

e)ILIMITAÇÃO: não é possível determinar, através de textos explícitos, o seu conteúdo. Apenas em sentido negativo é que a doutrina e a própria legislação indicam que o titular não pode fazer, deduzindo-se daí, por via indireta, seu conteúdo positivo.

1.4 O regime jurídico da propriedade no direito brasileiro

O direito de propriedade encontra-se, na Constituição Federal brasileira, no título que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais". Por esta razão, o regime jurídico da propriedade, no Direito brasileiro, tem seu fundamento na Constituição. Não se tem dúvida de que a propriedade, consagrada desde que o Direito iniciou sua positivação, é um direito fundamental.

A maioria dos doutrinadores brasileiros, quer do campo do Direito Público, quer do campo do Direito Privado, consideram o regime jurídico da propriedade privada como sendo subordinado ao Direito Civil, classificando-o como direito real fundamental.

Todavia, as relações de propriedade privada estão hoje sujeitas à disciplina de Direito Público, que tem seu fundamento nas normas constitucionais.

A propriedade pertence mais à seara do direito público do que à do direito privado, visto ser a Carta Magna que traça seu perfil jurídico. Urge fazer com que se cumpra a função social da propriedade, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo o desenvolvimento econômico e os reclamos da justiça. O direito de propriedade deve desempenhar uma função social no sentido de que a ordem jurídica confere ao seu titular um poder em que estão conjugados o interesse do proprietário e o do Estado ou social (DINIZ, 1995, p. 87).

Em suma, o que quis dizer a Professora Maria Helena Diniz é que é a Constituição que assegura o direito de propriedade e estabelece seu regime fundamental, cabendo ao Direito Civil exclusivamente disciplinar as relações civis a ela inerentes. Deste modo, as disposições do Código Civil só valem no âmbito das relações civis, mesmo assim com as delimitações e condicionamentos que das normas constitucionais defluem para a estrutura do direito de propriedade em geral.

E José Afonso da Silva (1996, p. 265) põe fim a qualquer dúvida que remanesça sobre esta discussão quando afirma que "as normas de Direito Privado sobre a propriedade hão que ser compreendidas de conformidade com a disciplina que a Constituição lhe impõe".

2 O DIREITO DE PROPRIEDADE E O CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
O automóvel, tal como a humanidade, é fruto de um processo evolutivo, sendo seus predecessores o carro puxado a cavalos, no qual foi montado um motor a vapor, que inventaram um jeito de parar, aumentar a potência, fabricar em série e assim sucessivamente. Assim como a humanidade deixou o aspecto simiesco, o carro foi perdendo sua semelhança com as carruagens.

Hoje, o carro faz parte da vida da maioria das pessoas. Para alguns, é seu instrumento de trabalho; para outros é o sonho de consumo. Independentemente de qualquer coisa, os veículos automotores são uma realidade. Um dos assuntos mais críticos de toda metrópole certamente é o trânsito. A todo instante são estudadas saídas para sua melhora.

Ademais, o carro é um bem de consumo que chega, em muitos casos, a ter o valor pecuniário equivalente ao de um imóvel. De qualquer forma é um bem e como tal devem ser exercidos sobre ele todas as prerrogativas do direito de propriedade: uso, gozo, fruição e disposição.

Sob este aspecto, as relações civis inerentes ao automóvel, como a qualquer outro bem, são regidas pelos dispositivos contidos no Código Civil brasileiro, especificamente nos artigos 524 a 673.

Todavia, por ser o trânsito um assunto tão sério, mister se fez a criação de um ordenamento jurídico para regulamentá-lo. Atualmente, vigora no País a Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 2002, que institui o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), com as modificações efetuadas pela Lei n.º 9.602, de 21 de janeiro de 1998.

Em sendo assim, esta legislação que trata do tema impôs algumas condições à aquisição e ao uso dos veículos automotores. Tal afirmativa é facilmente visualizada ao se consultar o Código de Trânsito Brasileiro. Nele foi destinado um capítulo específico aos veículos (Capítulo IX), onde se encontra toda a regulamentação das exigências para o registro, o licenciamento e a circulação, além, é claro, das questões de segurança e identificação.

Devido ao caráter especial da propriedade de veículos automotores, a Constituição Federal de 1988 passou por uma emenda (Emenda Constitucional n.º 3, de 17 de março de 1993), que criou o inciso III, no artigo 155, determinando que "compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre propriedade de veículos automotores". A Constituição inovou neste aspecto. Até então, a única tributação que recaía sobre o contribuinte pelo simples fato dele ser proprietário de algum bem, eram os tributos sobre a propriedade imóvel.

Os Estados criaram o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). No Estado de Minas Gerais este tributo é regido pelo Lei Estadual n.º 12.735, de 30 de dezembro de 1997 e regulamentado pelo Decreto n.º 39.387, de 14 de janeiro de 1998.

O legislador, ao elaborar o Código de Trânsito (art. 131, § 2º), esteve atento a esta alteração constitucional, vinculando o licenciamento dos veículos à quitação de tributos, encargos e multas. E o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que vem a ser o órgão máximo do Sistema Nacional de Trânsito, com funções especialmente normativas de coordenação e algumas executivas, e competência em todo o território nacional, editou a Resolução n.º 13, de 12 de fevereiro de 1998, incluindo no porte obrigatório de documentos os comprovantes do pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos e do Seguro Obrigatório.

Não satisfeito com a exigência da comprovação do pagamento de tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculadas ao veículo, instituída pelo Código, o CONTRAN ainda passou a exigir que os proprietários de veículos automotores portassem o "comprovante de pagamento atualizado do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, conforme normas estaduais, inclusive do Distrito Federal" (art. 1º, inciso III, Resolução n.º 13/98).

Isto posto, subentende-se que o legislador criou uma nova espécie de Execução Fiscal: ou o proprietário do veículo paga o IPVA ou não o verá licenciado para trafegar. A ausência do licenciamento anual e o conseqüente tráfego sem o porte do documento que o certifica constitui a infração de trânsito de "conduzir o veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado" (art. 230, inciso V, CTB), cujas penalidades são a aplicação de multa gravíssima (180 UFIR) e a apreensão do veículo, além da medida administrativa de remoção do mesmo.

Prosseguindo nesta linha de raciocínio, chega-se ao dispositivo do Código de Trânsito Brasileiro, que determina que "a restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação" (art. 262, § 2º), que, analisado juntamente com o art. 328 do mesmo diploma legal ("os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados por seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão levados à hasta pública, deduzindo-se do valor arrecadado, o montante da dívida relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver, depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei"), leva à conclusão inexorável de que o legislador ordinário criou uma nova Execução Fiscal, todavia sem se respeitar os princípios constitucionais do devido processo legal, sem o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens (art. 5º, inciso LIV) e do contraditório e da ampla defesa, assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV).

Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla, no que se inclui o direito de recorrer das decisões tomadas. Ou seja: a Administração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais.

Note-se que "privar da liberdade ou da propriedade" não é apenas simplesmente elidi-las, mas também o é suspender ou sacrificar quaisquer atributos inerentes a uma ou a outra; vale dizer: a privação não precisa ser completa para caracterizar-se como tal. Assim, para desencadear conseqüência desta ordem, a Administração terá que obedecer a um processo regular (o devido processo legal), o qual, evidentemente, como resulta do inciso LV do art. 5º, demanda contraditório e ampla defesa (BANDEIRA, 1998, p. 665).

Ademais, a apreensão de veículo automotor em decorrência da falta do licenciamento anual, que prescinde o pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, fere outro princípio constitucional: o princípio do caráter não-confiscatório dos tributos, segundo o qual "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco" (art. 150, inciso IV).

Explica-se: a Constituição estabeleceu, em seu art. 150, inciso IV, o princípio que proíbe o efeito confiscatório dos tributos. Cumpre ressaltar que a vedação instituída pelo artigo é genérica, portanto aplicável não só a impostos, e sim a todas as espécies tributárias.

Conquanto determinadas vezes as políticas extra-fiscais no manejo dos tributos tenham finalidade diferente da meramente arrecadatória, como, por exemplo, a progressividade das alíquotas do IPTU, esta política não pode violar inexplicavelmente o direito de propriedade, pois, se até mesmo uma desapropriação, em que também está presente o interesse público, deve ser indenizada, na forma da lei, de maneira justa, não cabe ao Poder Legislativo instituir tributo com efeito confiscatório, afrontando o direito de propriedade.

Não discrepa Washington de Barros Monteiro (1958) ao afirmar que a propriedade é o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos e o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas.

Assim também o deve ser com relação ao IPVA. Vincular o seu pagamento à obtenção do Certificado de Licenciamento Anual e, por conseguinte, determinar a apreensão do veículo que não tiver sido licenciado é atribuir caráter confiscatório a este tributo. Em outras palavras: a simples insolvência de um imposto pode levar à perda do bem sobre o qual ele incide.

"... O tributo, sendo instrumento pelo qual o Estado obtém os meios financeiros de que necessita para o desempenho de suas atividades, não pode ser utilizado para destruir a fonte desses recursos " (MACHADO, 2000, p. 219).

E, ainda, na visão de outro famoso tributarista brasileiro:

Alojado no cerne de todas as situações materiais que sofrem o impacto tributário, o direito de propriedade é uma preocupação constante do legislador no desempenho da tarefa legislativa e requer a contínua vigilância dos cidadãos, para vê-lo efetivamente guarnecido na conformidade da proteção constitucional (CARVALHO, 1995, p. 97).

3 A APREENSÃO DE VEÍCULOS COMO PENALIDADE APLICADA À INFRAÇÃO DE TRÂNSITO
Não é inovação do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) a previsão da apreensão de veículo automotor em decorrência do cometimento de determinadas espécies de infrações de trânsito. O antigo Código Nacional de Trânsito, instituído pela Lei n.º 5.108, de 21 de setembro de 1966, e regulamentado pelo Decreto n.º 62.127, de 16 de janeiro de 1968, já fazia menção a ela. Na mesma lógica, foi editada a Lei n.º 6.575, de 30 de setembro de 1978, que "dispõe sobre o depósito e venda de veículos removidos, apreendidos e retidos, em todo o território nacional".

Certo é que não é intenção deste trabalho discutir a aplicação de penalidades pela via administrativa. O assunto é por demais complexo, controverso e poderia ser tema de um outra monografia. O que se irá aqui discutir é a aplicação da apreensão de veículos automotores pelo cometimento de infrações de trânsito e a forma como a mesma vem sendo aplicada.

Oportuno reparar que as três normas supra citadas foram editas em pleno regime militar pelo qual passou o Brasil a partir do Golpe de 1964 até meados da década de 80. Na ditadura, foram suspensas as garantias constitucionais e atitudes como a de exigir créditos tributários por meio de extorsão eram "engolidas" pela sociedade, que se viu obrigada, durante 20 anos, a conviver com os plenos poderes que possuíam os militares, que sempre os utilizaram de maneira déspota, não conseguindo, nem assim, transformar o País.

Advindo o novo regulamento do trânsito no Brasil, dispositivos desta natureza continuaram a compô-lo, numa flagrante manutenção de resquícios do autoritarismo que reinou no País por longa data, a despeito do mesmo ter sido elaborado à luz da Constituição Federal de 1988, que é, para muitos, a mais democrática e liberal de todo tempo e lugar.

Todavia, o que importa neste capítulo é entender o instituto da penalidade de apreensão de veículos automotores.

A apreensão do veículo consiste na sua retirada de circulação por não preencher os requisitos legais, especialmente aqueles que envolvem a segurança. Retira-se de circulação e recolhe-se em local determinado pela autoridade até o decurso do prazo estabelecido ou a cessação dos motivos determinantes da medida (RIZZARDO, 1998, p. 671).

O caput do art. 262 do CTB fixa o prazo máximo de permanência do veículo em 30 dias e a Resolução do CONTRAN n.º 53, de 21 de maio de 1998, fixou os prazos de apreensão segundo critérios da multa prevista para a infração, dentro daquele prazo máximo. Ademais, o caput do mesmo artigo determinou também que o ônus da permanência do veículo no depósito do órgão ou entidade apreendedora é do proprietário do veículo.

Como fora dito anteriormente e em consonância com o que dispõe a própria Lei 9.503/97, a apreensão do veículo é uma penalidade. Como tal, por uma questão de analogia e em respeito às garantias constitucionais do direito de ação, devem ser observadas todas as garantias processuais penais que, juntamente com outras garantias constituem a segurança em matéria penal.

Desta forma, para a aplicação da penalidade de apreensão do veículo, deve ser observada a garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso LIV, segundo a qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. "Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º, LV) fecha-se o ciclo das garantias constitucionais" (SILVA, 1996, p. 411).

O que vem ocorrendo na prática é que os agentes das autoridades de trânsito, ao constatarem a infração, providenciam a remoção do veículo para o pátio de recolhimento e as autoridades de trânsito aplicam a penalidade de apreensão sem se respeitar o devido processo legal, sem abrir espaço ao contraditório e sem permitir a ampla defesa.

O Código de Trânsito Brasileiro não fez nenhuma menção à necessidade de um processo administrativo para a aplicação de penalidades pelo cometimento de infrações de trânsito, prevendo apenas o recurso às Juntas Administrativas de Infrações (JARI), todavia somente depois de já aplicada a penalidade.

Este ato, eivado de arbitrariedades, fere mortalmente o princípio constitucional do devido processo legal. Neste ponto, já havia observado brilhantemente o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello (1998) que não há necessidade da retirada definitiva do bem, bastando apenas a suspensão ou o sacrifício de quaisquer atributos legítimos inerentes ao direito de propriedade, mormente a posse, para caracterizar a privação. Ou seja, se a autoridade de trânsito irá aplicar a penalidade de apreensão do veículo por 10 (dez) dias, por exemplo, ela estará suspendendo a posse do bem, que é atributo legítimo inerente ao direito de propriedade sem observar as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Saliente-se, entretanto, que o Conselho Nacional de Trânsito, no ano de 1980, antes mesmo da promulgação da atual Constituição Federal, que estendeu a ampla defesa e o contraditório ao processo administrativo, baixou a Resolução n.º 568, criando a figura da defesa prévia.

Como o nome já diz, (defesa prévia) é a forma de o condutor defender-se, quando estiver insatisfeito por ato do agente da autoridade de trânsito, antes da aplicação da penalidade" (KRIGGER, 1999, p. 132).

A Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997, não fez nenhuma previsão quanto ao instituto da defesa prévia, tampouco o CONTRAN editou nova resolução reafirmando o disposto na Res. 568/80. Certo é que assim como pensa o autor Ilson Krigger (1999), a adoção deste procedimento deve ser tomada antes da autoridade aplicar a penalidade, pois só assim estariam sendo observados os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, vez que a defesa prévia, se utilizada, representaria um meio rápido, eficaz e justo de o suposto infrator se comunicar com a autoridade de trânsito, com o propósito de solicitar a correção de ato administrativo defeituoso ou irregular que, se levado adiante, certamente lhe causará enorme prejuízo, além, é claro, de suspender atributos intrinsecamente vinculados ao direito de propriedade.

Ocorre que a maioria absoluta dos órgãos de trânsito estão agindo de modo a ignorar o direito da defesa prévia, tanto na aplicação da penalidade de multa quanto na apreensão de veículos. Ressalve-se que a Resolução do CONTRAN de n.º 568/80 não foi expressamente revogada e, conforme estabelece o art. 314 do Código de Trânsito Brasileiro, as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito existentes até a data da publicação do Código continuam em vigor naquilo que não conflitem com ele. Em sendo assim, além de agirem inconstitucionalmente, estes órgãos estão descumprindo orientação do órgão máximo do Sistema Nacional de Trânsito.

4 A DEPENDÊNCIA DA QUITAÇÃO DE TRIBUTOS, MULTAS E ENCARGOS PARA A OBTENÇÃO DO LICENCIAMENTO E PARA A LIBERAÇÃO DOS VEÍCULOS APREENDIDOS
Chega-se, neste momento, ao cerne da discussão mais importante a que se propôs o presente trabalho: a constitucionalidade dos §§ 2º dos artigos 131 e 262 do atual Código de Trânsito. Para tanto, é indispensável a transcrição destes dispositivos, o que se fará a seguir.

Dispõe o § 2º do art. 131 do CTB:

O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.

E este é o conteúdo do § 2º do art. 262 do mesmo diploma legal:

A restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica.

Todo veículo automotor, elétrico, articulado ou semi-reboque, para poder trafegar pelas vias, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo. O licenciamento é, então, o documento indispensável para a circulação.

Como se depreende da análise do dispositivo supra, enquanto não se der o pagamento do IPVA, das multas e de outros encargos, não se efetiva o licenciamento. Ora, partindo do pressuposto de que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens (art. 524, caput, Código Civil) e de que o licenciamento anual é condição apenas para que o veículo possa circular, qual a razão, senão o furor arrecadatório do Poder Público, de o legislador ter determinado que o pagamento destes encargos seja um dos requisitos para sua obtenção?

É tão facilmente presumível a única intenção arrecadadora que a exigência da aprovação em vistoria e em inspeção de segurança veicular e de controle de poluição (que até o presente momento não foi regulamentada pelo CONTRAN), que também é requisito para licenciar o veículo, veio em segundo plano no art. 131, constituindo seu terceiro e último parágrafo.

Se o veículo só poderá circular caso possua o Certificado de Licenciamento Anual, parece óbvio que muito mais importante do que pagar os encargos relativos a ele é comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído.

O verbo parecer, propositadamente utilizado, revela, todavia, que não é isso que vem acontecendo na prática. O Conselho Nacional de Trânsito ainda não regulamentou o § 3º do art. 131 e os órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal não têm exigido tal comprovação. Em contrapartida, o não pagamento do IPVA, das multas e de outros encargos têm impedido o licenciamento.

Quanto à questão das multas, o Poder Judiciário tem entendido que elas só poderão impedir o licenciamento quando estiverem consolidadas ou decididas, com a prévia notificação do devedor e a possibilidade dos meios de defesa.

Administrativo. Mandado de segurança. Renovação de licença de veículo. Pagamento de multa. Notificação do infrator. Direito de defesa. Irregularidade da constituição do débito. Recurso Especial provido.

Não se pode renovar licenciamento de veículo em débito de multas. Para que seja resguardado o direito de defesa do suposto infrator, legalmente assegurado, contudo, é necessário que ele (infrator) seja devidamente notificado, conforme determinam os arts. 194 e 210 do Decreto n.º 62.127/68, alterado pelo Decreto n.º 98.933/90.

Consoante jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal e desta Corte, se não houver prévia notificação do infrator, a fim de que exercite seu direito de defesa, é ilegal a exigência do pagamento de multas

de trânsito, para a renovação de licenciamento de veículo.

Recurso provido sem discrepância. (STJ, em Recurso Especial n.º 34.657-8-SP, 1ª Turma, de 02/06/1993).

Em outra decisão: "É inadmissível condicionar a renovação de licença de veículo ao pagamento de multa da qual o motorista não foi regularmente notificado. Precedentes." (STJ, em Recurso Especial n.º 64.445-RS, relator o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em 18/03/1997).

Louváveis as duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, que refletem o entendimento pacífico deste egrégio tribunal sobre o tema e que reforçam ainda mais a precária constitucionalidade e legalidade do aludido dispositivo.

É bom que se esclareça que em momento algum se pretendeu aqui questionar a legalidade da cobrança do IPVA, das multas e de outros encargos legalmente previstos relativos aos veículos automotores. Até mesmo porque o Estado de Minas Gerais instituiu, para o exercício de 2002, a Taxa de Licenciamento Anual de Veículos Automotores. Inúmeras foram as alegações de inconstitucionalidade do referido tributo, que não encontraram respaldo no Poder Judiciário. Com o que não se concorda é o fato de se vincular a quitação de tais encargos à obtenção do licenciamento. Considerando que este é condição para o veículo circular, não se admite a negativa em fornecer o certificado por esta razão. Em Minas Gerais, quem não quitou a aludida taxa e não recorreu ao Judiciário, não teve seu veículo licenciado neste ano.

Inobstante não tenham sido encontradas jurisprudências que afirmassem este entendimento, não se tem dúvida da flagrante inconstitucionalidade do § 2º do art. 131, que, por esta razão, deveria desaparecer do atual Código de Trânsito Brasileiro, já que a Administração Pública dispõe de instrumentos próprios para receber tais dívidas, como se verá adiante.

Já no que diz respeito às exigências para a liberação dos veículos apreendidos, as ilegalidades são ainda mais evidentes. A Lei 9.503/97, no caput do seu art. 262, preconiza que "o veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada será recolhido ao depósito e nele permanecerá (...) pelo prazo de até trinta dias (...)". Ao se analisar este dispositivo, tem-se a falsa impressão de que, aplicada a penalidade e cumprido o prazo de "reclusão", o veículo será imediatamente liberado. Ledo engano. O próprio artigo 262, em seus §§ 2º e 3º, estabelece, no entanto, duas condições para a liberação, respectivamente: o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica e o reparo de qualquer componente ou equipamento obrigatório que não esteja em perfeito estado de funcionamento.

A exigência do reparo é mais do que justificável, inclusive e, principalmente, porque grande parte das infrações que prevêem a apreensão como penalidade são por motivos que envolvem a segurança.

O questionamento é, mais uma vez, quanto à dependência da quitação dos encargos relativos ao veículo para que o mesmo seja liberado.

Fazendo aqui uma abstração e comparando o sistema de aplicação de penalidades do Código de Trânsito com o Direito Penal brasileiro, não se encontra similitudes. Ao que consta, o preso, ao cumprir uma pena de reclusão, não tem sua liberdade condicionada ao pagamento de sua "estada" na prisão. Quem mantém o sistema penitenciário no Brasil é o contribuinte. É bem verdade que o correto e o justo seria que os presos pagassem com o trabalho as despesas que causaram à Administração Pública. Mas é de conhecimento de todos que não é isso que acontece na maioria absoluta das penitenciárias do País, onde os presos têm todo um sistema funcionando em função deles, com ônus para o Estado e permanecendo os mesmos em total ociosidade.

Não se quer com esta analogia justificar um erro pelo outro. Não, de forma alguma. Um veículo apreendido, por exemplo, por transitar em desacordo com a autorização especial, expedida pela autoridade competente para transitar com dimensões excedentes, ou quando a mesma estiver vencida, deve mesmo ser tirado de circulação e sofrer a penalidade de apreensão, pois, indubitavelmente, estará colocando em risco a segurança de todos os usuários das vias por onde ele passará.

O que se defendeu e vem sendo defendido ao longo deste trabalho é o respeito ao direito de propriedade, através da exigência do devido processo legal para a aplicação desta penalidade, que é a mais gravosa de todo o Código, a fim de que a mesma não acarrete ao proprietário outras penalidades acessórias.

Ocorre que os órgãos de trânsito têm cumprido fielmente o disposto no § 2º do art. 262, chegando alguns a exigir até mesmo o documento de nome "NADA CONSTA", expedido pelos Departamentos Estaduais de Trânsito dos Estados e do Distrito Federal. Essa atitude significa, para o proprietário do veículo, uma bi-penalização. Aquele que, ao sofrer a perda temporária de um bem cujo domínio lhe pertence, sem ao menos ter o direito ao contraditório e à plenitude de defesa, tem que arcar com o ônus da permanência de seu veículo no depósito e ainda pagar todas as dívidas registradas em nome do automóvel.

Este sistema transformou-se, em todo o País, num excelente negócio. Os órgãos de trânsito têm terceirizado seus pátios de apreensão de veículos, fixando os preços do reboque e das diárias em valores estratosféricos. Sendo assim, a administração dos pátios tornou-se uma atividade altamente lucrativa, gerando dividendos para as empresas que os administram e para o próprio Poder Público. Apesar das aberrações jurídicas encontradas ao longo de todo o CTB, certamente não era esta a intenção do legislador. Como sempre, os administradores interpretam a lei a seu bel prazer e conseguem "extorquir" cada vez mais o contribuinte e ainda enriquecer empresários, com interesses muitas vezes escusos, que não se preocupam nem um pouco com a sociedade que, ainda que indiretamente, os remunera.

Alheios a todas estas artimanhas, muitos cidadãos, cientes de seus direitos e por acreditarem que a República Federativa do Brasil constitui-se em verdadeiro Estado Democrático de Direito, assim como está estampado no caput do art. 1º da Constituição Federal, recorrem ao Poder Judiciário com a singela intenção de encontrar justiça, no sentido mais primitivo que esta palavra possa ter. E, felizmente, este órgão, que é um dos Poderes da União, tem prolatado decisões que procuram estar coerentes com os princípios e as garantias constitucionais, assegurando assim a efetiva tutela jurisdicional de direitos substanciais deduzidos.

Abaixo, segue a transcrição parcial de dois acórdãos que consideraram ilegal o condicionamento do pagamento de multas de trânsito à liberação de veículo apreendido, proferidos, respectivamente, pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e pelo Superior Tribunal de Justiça:

Mandado de segurança. Reexame. Apreensão de veículo. Liberação condicionada ao prévio recolhimento de multas. Ilegalidade. Autoridade coatora. Segurança concedida. Remessa desprovida.

Não há ilegitimidade passiva no mandado de segurança quando o impetrante indica como autoridade coatora aquela que praticou o ato violador de possível direito líquido e certo e é detentora de competência para desfazê-lo. É abusiva e ilegal a exigência de prévio pagamento de multas de trânsito, como condição para liberação do veículo apreendido. (TJSC, acórdão em Mandado de Segurança n.º 97.000756-6, 2ª C. C. Esp., relator o Desembargador Nilton Macedo Machado, julgado em 12/06/1997)

Administrativo. Retenção de veículo. Multas. Liberação condicionada à prévia satisfação das penalidades. Falta de notificação do infrator. "CNT", arts. 89, 95 e 99 – Lei 6.575/1978 (arts. 1º e 2º).

1- Configura-se ilegalidade condicionar a liberação de veículo apreendido à prévia satisfação das penalidades administrativas, aplicadas sem notificação do infrator, ferindo o devido processo legal.

2- (...)
3- (...)

(STJ, em Recurso Especial n.º 74.657-SP, 1ª Turma, relator o Ministro Milton Luiz Pereira, julgado em 07/10/1996)

Um país que se constitui em Estado Democrático de Direito, que tem como dois de seus princípios o princípio da constitucionalidade, "que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se fundamenta na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre de regras da jurisdição constitucional" (SILVA, 1996, p. 122) e o princípio democrático, "que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º) (op. cit., p. 122), não pode ter em seu ordenamento jurídico dispositivos normativos, como os acima citados, que esbulhem do cidadão seus direitos públicos subjetivos, enunciados, na ordem política e na ordem social, com certa largueza, na própria Constituição da República Federativa do Brasil. Isso porque, segundo o Mestre Miguel Reale (1990, p.270-271):

Os direitos públicos subjetivos são momentos desse processo de organização da vida social, de tal sorte que não apenas existem direitos e deveres para os indivíduos, como também concomitantemente e paralelamente, direitos e deveres para o Estado: é algo que resulta da natureza mesma da evolução histórica. É tão essencial ao Estado, no mundo contemporâneo, o reconhecimento de esferas primordiais de ação aos indivíduos e grupos que, embora os direitos públicos subjetivos possam sofrer redução, grande número deles sempre subsiste, até mesmo nos Estados totalitários.

Com sua Teoria do Direito e do Estado, Reale evidencia que o fenômeno dos direitos públicos subjetivos, em virtude de sua complexidade, só poderá ser entendido levando-se em conta aspectos políticos, sociais e econômicos, e não só os jurídicos.

O problema dos direitos públicos subjetivos é um problema histórico-cultural, porquanto representa um momento de ordenação jurídica, atendendo a uma exigência social que se processa independentemente do arbítrio e da vontade daqueles que, transitoriamente, enfeixem em suas mãos o poder político (op. cit., p. 271).

E conclui:

Certo é, todavia, que o reconhecimento de direitos públicos subjetivos, armados de garantias eficazes, constitui uma das características basilares do Estado de Direito, tendo eles como fundamento último o valor intangível da pessoa humana, o que demonstra que, como em todo problema relativo ao fundamento de um instituto jurídico, não podemos deixar de elevar-nos até o plano da Filosofia (op. cit., p. 271).

Quando Miguel Reale fala em garantias eficazes, certamente ele está se referindo à própria Constituição escrita, que, ao estabelecer princípios que constituem o Direito público fundamental de uma nação, deve ser o pano de fundo de todo o ordenamento jurídico e, principalmente, dos atos do Poder Público, a fim de garantir, de maneira eficaz, a preservação dos direitos públicos subjetivos, que são, no modo de vista de Reale (1990), matéria que diz respeito ao que há de mais essencial ao homem, que é a sua posição jurídico-política no seio da comunidade e do Estado, como expressão de sua liberdade.

Face esta análise, não há como atacar veementemente os §§ 2º dos arts. 131 e 262 da Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997 e, não só afirmá-los inconstitucionais, mas ir além, dizer que afetam a própria dignidade do cidadão brasileiro, "(...) ameaçando a própria integridade da ordem jurídica" (REALE, 1984, p. 246).

5 O PRINCÍPIO ADMINISTRATIVO DA AUTO-EXECUTORIEDADE E OS ATOS PRATICADOS PELOS ÓRGÃOS DE TRANSITO NO CUMPRIMENTO AO ESTABELECIDO NO CTB
De acordo com a melhor doutrina do Direito Administrativo, o princípio da auto-executoriedade, como princípio informativo do Direito Administrativo, é aquele pelo qual a Administração executa seus próprios atos, assim que editados, dispensando o prévio título executório.

Este princípio aplica-se, por exemplo, no caso do decreto expropriatório, que ao ser editado, dá às autoridades administrativas o direito de penetração no imóvel, respondendo ela, apenas, pelos abusos cometidos.

Essa posição privilegiada da Administração, perante o administrado, que lhe confere a faculdade excepcional de pôr em execução com os próprios meios de que dispõe, inclusive manu militare, os atos administrativos editados, sem o cuidado prévio de submeter tais decisões à apreciação da autoridade judiciária, resulta daquilo que os autores franceses denominam de privilégio "du préalable" e da ação de ofício, prerrogativas só derrogadas, excepcionalmente quando se acha em jogo a liberdade individual ou a propriedade confiscada, sem o respectivo processo expropriatório (CRETELLA JÚNIOR, 1995, p. 210).

A expropriação é um dos institutos de maior gravame imposta pela Constituição aos proprietários de imóveis. Ela ocorre sempre que for localizado o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas em glebas de qualquer região do País (art. 243, CF).

José Cretella Júnior (1995) é claro ao afirmar que as decisões administrativas que trazem, em si, força executória, entrando em ação e produzindo imediatos efeitos, unilateralmente, são prerrogativas só derrogadas à Administração no caso de prisão em flagrante delito e de expropriação.

Em outras palavras, o princípio da auto-executoriedade é limitado. A Administração não possui a faculdade de se utilizar dele a seu bel prazer.

... A executoriedade, compatível com o regime de direito, encontra barreira intransponível na lei, sem o que estariam ameaçadas as liberdades públicas, fundamento dos Estados em que se repele o antijurídico (op. cit., p. 212).

Assim o é com relação ao Código de Trânsito Brasileiro. O que os órgãos de trânsito têm feito ao exigir o pagamento de tributos, multas e encargos relativos ao mesmo para licenciá-los ou para liberá-los, no caso de aplicação da penalidade de apreensão, é verdadeira auto-execução.

Neste sentido, também entendeu o egrégio Ministério Público do Estado de Minas Gerais, conforme se verifica no brilhante parecer exarado nos autos do processo de n.º 024.01.033.159-3, ainda em trâmite perante a 3ª vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte.

A fim de dar maior sustentação ao alegado até o momento no presente trabalho, pede-se licença para a inserção, sob a forma de transcrição do aludido parecer. Ressalve-se apenas que a terminologia utilizada e as citações feitas são de exclusiva responsabilidade do Ilustríssimo Promotor de Justiça que o redigiu.

A multa administrativa decorrente de infração à norma de trânsito é impositiva e deve ser paga pelo infrator.

Ocorre que, na espécie, o ato administrativo da Administração Pública não goza do atributo da auto-executoriedade.

A auto-executoriedade consiste no poder que detém a Administração de executar seus atos administrativos, sem a necessidade da intervenção do Poder Judiciário. Somente são auto-executórios os atos dotados de imperatividade; todavia nem todo ato administrativo goza da auto-executoriedade.

Não basta que o ato administrativo contenha o atributo da imperatividade, é preciso que seja um ato próprio da Administração. Traga-se a lume a lição do Prof. Hely Lopes: "O que se faz necessário – como bem adverte Bielsa – é distinguir os atos próprios do poder administrativo, na execução dos quais é irrecusável a auto-executoriedade, dos que lhe são impróprios, e, por isso mesmo, dependentes da intervenção de outro poder, como ocorre com a cobrança contenciosa de uma multa, que, em hipótese alguma poderia ficar a cargo exclusivo dos Órgãos administrativos".

Na mesma linha está Odete Medauar: "Evidente que nem todas as medidas recebem execução direta pela própria Administração; assim, por exemplo, a cobrança de multa aplicada e de tributos se efetua pela via judicial, fugindo à competência da Administração a decretação das medidas coativas sobre o patrimônio dos devedores para o cumprimento dos débitos".

Cite-se ainda o Prof. Edimur Ferreira de Faria: "A cobrança de multas ou de outras vantagens pecuniárias não se opera diretamente pela Administração. Nesses casos, não comporta a auto-executoriedade. É indispensável a audiência do Poder Judiciário. Não havendo concordância do devedor em pagar, amigavelmente, o recurso à Justiça é condição indispensável para impor-lhe o dever de cumprir a obrigação".

Com razão os ilustres administrativistas. É imperativo o ato que impõe ao administrado a obrigação de pagamento de uma multa ou de um tributo. No entanto, a cobrança de referidos créditos não é ato próprio da Administração e, portanto, o ato é despido do atributo da auto-executoriedade. Aliás, para tal propósito, o Legislador colocou à disposição da Administração a L. 6.830, que regulamenta o executivo fiscal, para a cobrança da dívida ativa tributária e não-tributária (art. 2.º, § 2.º): " O meio próprio para a cobrança de multas é o executivo fiscal que não pode ser substituído por imposição de índole administrativa (JTJSC, 1971, 1.º vol., p. 86, Rel. May Filho).

Assim sendo, afigura-se inconstitucional, por exemplo, a norma do Código de Trânsito que condiciona o licenciamento de veículo ao pagamento de multas, bem como a norma municipal que condiciona a expedição de alvará de construção ao pagamento do IPTU ou a norma tributária que, para autorizar a impressão de documento fiscal, exige a apresentação de certidão negativa de débito fiscal. É que, por vias travessas, tais dispositivos dão à Administração a auto-executoriedade que ela não pode possuir, por se tratar, como se frisou, de ato administrativo impróprio (cobrança). Assim fazendo, a norma finca por ferir o disposto no art. 2º da Constituição, porque viola o princípio da separação dos poderes, visto que ao Poder Judiciário é dado mister da composição dos litígios com o emprego da coação.

A propósito de análogo tema, tenha-se a lição do ilustre tributarista Ruy Barbosa Nogueira: "O devedor em mora está sujeito à execução forçada judicial dentro do due process of law, com as garantias constitucionais do contraditório e jamais pode ser entregue à execução nas mãos do próprio credor. Essas sanções políticas são resquícios do ancién régime anterior à Revolução Francesa. Não têm cabimento dentro do atual Sistema Tributário Nacional. Essa forma manu militare de cobrança administrativa é, pois, absolutamente ilegítima e não deve ser mais tentada pelo fisco federal, porque já foi excluída da ordem jurídico-tributária, por torrente uniforme de julgados e pelo CTN que a não acolheu".

Por derradeiro, não outro o entendimento jurisprudencial: "Condicionamento da vistoria ao pagamento da multa é dar auto-executoriedade e um poder que a administração não tem" (TJRJ, 11.ª Câm. Civ., Rel. Des. Edson Scisino, em 27.05.99, proc. N.º 1999.009.89). "É ilegal e abusivo, ato do diretor do Detran, que impede o licenciamento de veículo, por ter o seu proprietário recolhido o IPVA, relativo ao exercício de 1993, a menor. A dívida pendente (IPVA) deverá ser exigida, mediante o devido processo legal, independentemente da quitação do imposto, relativo ao licenciamento correspondente ao ano de 1996" (TJPR, 6.ª Câm. Civ., Rel. Accacio Cambi, em 24.09.97, proc. N.º 53125900). "Lançamento e cobrança do IPVA do exercício de 1996, condicionada ao pagamento do tributo relativo a exercícios anteriores. Ilegalidade do procedimento" (TJPR, 1.º Gr. Câm. Civ., Rel. Des. Ivan Bortoleto, em 03.04.98, MS n.º 60020700). "Dispondo a Administração de meios para cobrar os valores correspondentes às multas impostas por infração às leis de trânsito é ilegal a exigência de sua prévia quitação, como condição para o licenciamento do veículo" (TJSC, 3.ª Câm. Civ., Rel. Des. Eder Graf, MS n.º 3.306, p. DIESC em 20.05.91).

Com efeito, diante de flagrante inconstitucionalidade, a Administração Pública deve deixar de cumprir lei infraconstitucional, sem que com isto esteja exercendo controle da constitucionalidade, mas, sim, apenas exercendo o autocontrole de legalidade de seus atos, pois, se é certo que a Administração Pública deve cumprir a lei, não será menor verdadeiro afirmar que, no entrechoque de preceitos, a melhor forma de realizar o princípio da legalidade será dando fiel cumprimento à Constituição, a Lei Maior. À guisa de exemplificação, seria inconcebível aceitar que o agente público, a pretexto de observância ao princípio da legalidade, fosse obrigado a cumprir uma lei manifestamente inconstitucional, apenas que ainda não assim declarada pelo Judiciário, praticando abuso de autoridade e se colocando conscientemente na condição de autoridade coatora. Daí o porquê de já se haver decidido que "O Poder Executivo não é obrigado a cumprir leis que considere inconstitucionais".

E só para dar maior ênfase a tudo o que alegou o ilustre Promotor em seu brilhante parecer, nada como citar J. J. Canotilho (1999, p. 682):

Um acto administrativo, a recusa de um acto, um silêncio das entidades públicas podem ultrapassar os limites legais do exercício do poder discricionário (excesso de poder). Por outro lado, o exercício do poder pode não se destinar aos fins visados pela lei (desvio do poder discricionário ou utilização viciada). Num caso e noutro, o Estado de direito impõe a sua proibição e a possibilidade de controlo do exercício da discricionariedade. Caso contrário, o exercício deste poder transformar-se-ia no .

Não resta dúvida, então, que os órgãos de trânsito não dispõem da auto-executoriedade, ainda que o legislador, ao editar a Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997, tenha, de certa forma, induzido-os a agirem assim. De qualquer forma, os §§ 2º dos arts. 131 e 262 não deveriam estar sendo cumpridos pelo Poder Público, ante a flagrante inconstitucionalidade da qual estão eivados.

Infelizmente, as ações que tentaram obter a declaração da inconstitucionalidade de tais dispositivos não obtiveram êxito junto ao Supremo Tribunal Federal. Entretanto, o Poder Judiciário não tem deixado de se imiscuir e, nos casos concretos, decidir conforme determina a Constituição e em consonância com os princípios atinentes a um Estado Democrático de Direito.

E Miguel Reale (1984, p. 257-258), ao fazer uma crítica à Teoria da Autolimitação de Jhering, acredita neste papel fundamental do Poder Judiciário:

Se se aceitasse o princípio da plenitude lógica da legislação positiva (note-se que dizemos: legislação positiva), então os limites da atividade estatal já estariam contidos na lei, e o processo político todo ficaria convertido em processo jurídico: em lugar de decisões políticas, só haveria deliberações jurídicas. Esse ideal do Estado reduzido ao Direito, e do Direito reduzido à lei, do poder todo tornado poder jurídico tanto pela matéria como pela forma, não nos parece realizável. A legislação não pode deixar de ter lacunas e, por mais que se aprimorem os métodos de interpretação, será sempre necessária uma margem de discrição para que o intérprete possa colocar o Direito formulado em consonância com as novas situações que o legislador não pôde ou não quis prever.

6 O ART. 328 DO CTB E A EXECUÇÃO FISCAL
Diante de tudo o que já foi dito até se chegar a este capítulo, pode-se dizer que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997) determinou uma seqüência de atos que, se completados, levarão, inquestionavelmente, à perda de todos os veículos dos proprietários insolventes.

Primeiro exige-se o pagamento de todos os tributos, multas e encargos relativos aos veículos para que os mesmos possam obter anualmente o documento de licenciamento. Em seguida, não havendo o licenciamento e permanecendo o veículo em circulação, incorrerá o mesmo na infração prevista no art. 230, inciso V, que consiste em "conduzir veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado", que tem como penalidades previstas multa gravíssima (180 UFIR) e apreensão do veículo. Apreendido o veículo, o mesmo só será liberado "(...) mediante o pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica" (art. 262, § 2º).

Não satisfeito com esta seqüência de arbitrariedades, o legislador ainda instituiu outra aberração jurídica: criou uma nova "Execução Fiscal", no entanto, sem observar os requisitos previstos na Lei n.º 6830, de 20 de setembro de 1980, que trata do assunto, e, sobretudo, sem acionar o Poder Judiciário. Esta nova figura, criada pelo CTB, ignora brutalmente os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Abaixo, a transcrição do art. 328, da Lei n.º 9.503/97, criador deste "Leviatã":

Os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados por seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão levados à hasta pública, deduzindo-se do valor arrecadado, o montante da dívida relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver, depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei.

Antes de se partir para o ataque ao dispositivo, oportuno fazer a defesa da Administração Pública. Como afirmado em outro capítulo, a previsão da penalidade de apreensão de veículos é relevante, sobretudo no aspecto da segurança. O CTB fixa a penalidade máxima em 30 dias (art. 262, caput). Cumprida a penalidade e analisando-se o art. 328 sem vinculá-lo ao § 2º do art. 262 (o que, todavia, não é possível), entender-se-ia a intenção do legislador. Ou seja, cumprida a penalidade, após transcorrer 90 (noventa) dias, aqueles veículos que não fossem reclamados, seriam levados à hasta pública. Obviamente, a Administração não deve ter para si o ônus de ser depositária eterna de um bem que não lhe pertence. Ademais, este ônus gera outros, com os quais o Poder Público não é obrigado a arcar.

Acontece que, e esta é a crítica que se faz, o § 2º do art. 262 continua a viger e os órgãos de trânsito têm-no cumprido cabalmente. Aí surge uma grave questão: ao ver seu veículo apreendido, o proprietário, muitas vezes, acaba por não reclamá-lo, uma vez que não dispõe dos meios para quitar as multas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos.

Em outras palavras, a lei condicionou a liberação dos veículos. E ao passo que condiciona, ela pretende, na verdade (e basta, para isso, ler nas entrelinhas do art. 328), executar o proprietário e receber dele todas as dívidas relativas ao seu veículo. E isto vem acontecendo sistematicamente, contudo sem a audiência do Poder Judiciário.

A lei a que se refere o art. 328 é a Lei n. º 6.575, de 30 de setembro de 1978, que, como já afirmado, foi editada em pleno regime ditatorial. Esta lei estabelece os atos a que obedecerá a alienação. Atos são procedimentos. E procedimento não é processo. Desta forma, e o próprio artigo diz isso claramente quando já chama o proprietário de ex-proprietário, ocorre uma expropriação, com o único fim claramente visível que é o de usar do valor do bem para quitar suas dívidas para com o Poder Público, seja ele na esfera federal, estadual ou municipal. Isso é Execução Fiscal e, sem sombra de dúvida, só poderia ser feita respeitado o disposto na Lei 6.830/80.

Inobstante ter à sua disposição todos estes meios ardilosos para "executar" o contribuinte, a Administração Pública deparou-se com um "sério" problema: o montante arrecadado nos leilões, na maioria dos casos, não estava sendo suficiente para cobrir sequer as despesas que teve o órgão que aplicou a penalidade, muito menos então quitar todos os tributos, multas e encargos vinculados ao veículo.

A Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, num profundo exercício de "ginástica cerebral" aprovou a Lei n.º 14.135, sancionada pelo Governador Itamar Franco em 28 de dezembro de 2001, e encontrou resposta para esta questão.

Dispõe o art. 11 da aludida lei estadual:

Art. 11 – Serão cancelados os processos referentes a créditos de IPVA e de multas de trânsito dos veículos vendidos em leilão promovido, na forma do art. 328 do Código de Trânsito Brasileiro, por órgão ou entidade da administração pública estadual, direta e indireta.

§ 1º - Os créditos arrecadados em decorrência de multas federais, municipais ou de outros Estados serão mantidos à disposição do órgão autuador em banco de dados, de forma apartada e individualizada, liberando-se o veículo para o arrematante.

§ 2º - O IPVA não incidirá sobre a propriedade de veículo apreendido e mantido em depósito do Estado no período compreendido entre a decisão judicial ou administrativa que determine a apreensão e a realização do leilão.

É impressionante o ponto a que chegou a imaginação dos Deputados Estaduais mineiros. Vejam só: a fim de se evitar o incômodo de leiloar os veículos e ter que reverter o montante arrecadado para o pagamento de tributos e multas, por exemplo, que na ordem hierárquica dos créditos tributários teriam preferência, o Estado de Minas Gerais optou por cancelar os créditos de IPVA e as multas de competência estadual, indo além, determinando também que os créditos federais, municipais ou de outros Estados sejam por eles cobrados do ex-proprietário, podendo assim o arrematante adquirir o veículo livre de quaisquer ônus.

Ou seja, com o leilão, o montante arrecadado é todo revertido aos cofres públicos estaduais sob a alegação de quitar as despesas com remoção e estada. Os outros órgãos "que se virem" para cobrar seus créditos. No mínimo engenhosa a saída encontrada pelo Governo mineiro.

A pergunta que se faz, e esta certamente os parlamentares mineiros não vão querer responder, é por que os benefícios da anistia do IPVA e das multas e do apartamento dos outros débitos não podem ser concedidos ao já proprietário do veículo para que o mesmo possa reavê-lo? Porém, a resposta é simples: porque assim o Estado não receberia nada e não lucraria com as apreensões; ele e as empresas terceirizadas que prestam o serviço de depositário.

Mas, em contrapartida, esta solução não seria juridicamente descabida, se não fossem tão abusivas as taxas cobradas pela remoção dos veículos e as diárias nos pátios de recolhimento. O Estado de Minas Gerais poderia promover a anistia e também apartar os outros débitos, ficando o proprietário apenas na obrigação de quitar as despesas da remoção e da estada do veículo, cabendo ao próprio Estado e aos outros entes federativos cobrarem seus créditos por meio da Execução Fiscal.

Ocorre que isto não é financeiramente viável, sob a ótica dos governantes. Assim como não é financeiramente interessante que todas as dívidas relativas ao veículo fossem cobradas por cada órgão credor, por meio da Execução Fiscal.

Se assim o fosse, ficaria a liberação do veículo condicionada apenas ao pagamento dos encargos de remoção e estada e à aprovação em inspeção veicular, até porque "’qualquer valor’, cuja cobrança seja atribuída por lei à Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal ‘será considerada Dívida Ativa’" (THEODOR JÚNIOR, 1998, p. 130), para fins de execução da dívida ativa fiscal.

7 CONCLUSÃO
É bem verdade que em virtude da política intervencionista do Estado, o proprietário de nossos dias desconhece o caráter absoluto, soberano e intangível de que se impregnava o domínio na era dos romanos.

Entretanto, o que se viu ao longo de toda esta análise que foi feita do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997), no que tange à propriedade de veículos automotores, constatou-se um verdadeiro desrespeito a inúmeros direitos públicos subjetivos. E, segundo o Professor Miguel Reale (1984, p. 246), "(...) há um dado que nos parece essencial na Ciência do Direito é este de saber se os direitos individuais são ou não criados pelo Estado".

E ele mesmo dá a resposta (op. cit., p. 246-247):

(...) Estamos convencidos de que o Estado não cria os direitos próprios à pessoa, visto como não se pode conceber Estado como pessoa jurídica sem concepção concomitante dos homens como personalidades jurídicas também.

Isto é, independentemente de os direitos públicos subjetivos estarem ou não consagrados na Constituição de um país, eles devem ser respeitados, pois sua existência é anterior à própria existência do Estado.

Procurou-se, ao longo de todo este trabalho, demonstrar as diversas aberrações contidas no texto da Lei n.º 9.503, de 23/09/1997 e as arbitrariedades que quase a totalidade dos órgãos de trânsito do Brasil vêm cometendo sob a falsa alegação de estarem cumprindo a lei.

Mas, todo este esforço seria em vão, se não se pudesse apontar solução para este problema. E aqui vai ela.

Revogam-se os §§ 2º dos artigos 131 e 262 do CTB; vincula-se o licenciamento anual apenas à inspeção veicular; mantém-se a infração prevista no art. 230, inciso V; e condiciona a liberação do veículo apreendido apenas à vistoria dos itens de segurança, já prevista no § 3º do art. 262, e ao pagamento das despesas com remoção e estada no depósito, vez que não é justo que a Administração Pública arque com este ônus. Os demais débitos (tributos, multas e outros encargos) passariam a ser cobrados por cada órgão credor por meio da Execução Fiscal, que é o meio idôneo e legal para esta cobrança.

Falando assim, parece fácil. Porém, é notório que todas as conquistas da população sempre partiram de reivindicações e sempre foram lentas e graduais. O silêncio é anuência, já dizia o dito popular. Enquanto o contribuinte "abaixar a cabeça" e aceitar a imposição de normas como esta que afetam inúmeras garantias constitucionais que foram a duras penas conquistadas, e que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito, no qual se constitui a República Federativa do Brasil, cada vez mais estar-se-á dando passos para trás, distanciando-se ainda mais da busca incessante daquilo que é por todos conceituado como democracia.

Enraizado na cultura nacional, como componente necessário e essencial da vida humana na tradição romano-cristã, encontra-se o princípio do respeito à propriedade privada, como elemento imprescindível ao desenvolvimento do ser e de sua família, dentro da orientação própria e em razão da liberdade natural de que é dotado (BITTAR, 1991, p. 153-154).

E assim também os são os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Garantias estas que, ao que parece, foram esquecidas pelo legislador ao elaborar o atual Código de Trânsito, no qual se privilegiou, mais uma vez, o furor arrecadatório do Poder Público.

É preciso que o cidadão dê um basta a tudo isso. São pequenas atitudes como este simples ensaio é que darão início a um processo de profunda reformulação pelo qual precisa passar o País. Todos devem acreditar que mudar é possível. Basta querer!

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